sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Chet - 13 de maio de 1988 (última versão)

E pensar que Russ não queria que eu cantasse”, pensou, jocoso, Chet Baker, enquanto interpretava My funny valentine pela enésima vez em sua atribulada vida de artista – “sweet comic valentine... You make me smile with my heart...” Estava num boteco de Amsterdã, onde parou para pegar mais um carregamento de suas drogas favoritas. Enquanto esperava, tocou um pouco com o grupo de jovens e anônimos jazzistas. “Chet Baker, senhoras e senhores, Chet Baker”, anunciou o efusivo baixista. O trompete, nos lábios que resistiram às porradas da vida, ainda guardava uma boa dose da sua alma cool. “Nunca é a mesma coisa, como a minha heroína”. O fio de voz lembrava o fio de seda que sustentava sua coluna e guiava suas viagens.
Chet já devia ter mais ou menos uns duzentos anos de vida. Intensa vida comprimida num pequeno espaço físico/temporal, que já se demonstrava exaurido. Os alcalóides entranhados nas mitocôndrias já não eram apenas uma experiência – eles se tornaram a experiência. E a sua alma inquieta queria muito mais. O coquetel de tudo que tomou no caminho para seu hotel adiantou-lhe mais uns meses do tempo. Duzentos anos e alguns meses. Olhou para suas mãos, para os seus poros, para um poro – “Para onde isso vai?”, e imaginou-se pelo avesso. O som do motor do taxi soava como um mantra: “A Terra ruminando”, murmurou.
Subiu para o seu quarto e tomou mais um pouco de tudo. O fio de seda o levantou da cama. Chet movia seus membros com leveza. Uma nuvem de seda sob seus pés. "Unphotographable...", balbuciou, enquanto caminhava para a janela, fascinado pela pequena estrela serelepe que insistia por uma fresta do céu encoberto de nuvens. O olhar, lá, distante, não percebeu que suas mãos não encontraram o peitoril. Seu velho corpo balançou como marionete antes que o fio de seda se rompesse. Chet caiu.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Manhattan Jazz Quintet

Se ainda não ouviu, ouça. O Manhattan Jazz Quintet é um grupo que merece ser apreciado pelos jazzófilos. Eu estou tentando tirar o atraso, pois só conheci o grupo recentemente. Em breve pesquisa, descobri que o quinteto tem uma história de 25 anos, recheada por bons trabalhos. Curiosamente (tá lá no Allmusic), é um daqueles grupos que, apesar do nome, tem se apresentado em outras praças (Ásia e Europa). É aquela história: o jazz mudou-se para outros rincões. Liderado pelo pianista David Mathews, o quinteto (no disco que agora ouço: Funk Strut) é completado por Lew Soloff (trompete), George Young (tenor), Eddie Gomez (baixo) e Steve Gadd (bateria). Como o nome sugere, a pegada é norteada pelo groove funky, que você pode conferir nos quatro temas de Mathews e nos temas de Horace Silver (Sister Sadie e Song for my father) e de Joe Zawinul (Mercy, mercy, mercy). Esse disco, gravado em 1991, me agradou bastante. A excelência dos componentes é explicitada em todas as faixas. Observem o tenor de George Young em Sister Sadie. Soloff não fica atrás - seu fraseado é exemplo do bom jazz. O resto do time não precisa de apresentação. É coisa de primeira.




quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Sonny, please!

Eu estava com o disco Sonny, please, de Sonny Rollins, há quase um ano e ainda não havia ouvido. Confesso um certo temor de ouvir algo que desabonasse o belo percurso desse ícone do jazz. Bobagem minha. Sonny mantém o sax em riste. Não afrouxou. Seu sopro continua um amálgama de virilidade e lirismo. O modo como acentua as notas ou como as interrompe é o mesmo de sempre - sinônimo de força (alguns colegas o dizem agressivo), nos permitindo divisar belas tessituras (se uma tela, diria cubista). O disco foi gravado em 2006, sob o selo Doxy, de sua propriedade (nome de um dos temas mais conhecidos do saxofonista). Nosso herói está cercado por músicos competentes como o baixista eletro/acústico Bob Cranshaw e pelo trombonista Clifton Anderson (também assina a produção) cujos solos são de primeira linha. O guitarrista Bobby Broom, por sua vez, não deixa a coisa desandar. Seu fraseado é relativamente econômico e evita maiores ousadias (fator que, de certo modo, preserva o clima do disco). Ouçam Nishi, uma de suas novas composições e, no tocadisco, Stairway to the stars.

PS - Tem um japona na percussão: Kimati Dinizulu. A bateria fica por conta de Steven "Steven J." Jordan e Joe Corsello.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Chet - 13 de maio de 1988 (versão 2)

“Tô de saco cheio de ficar esperando”, disse o maior dos três homens que aguardavam, no quarto do hotel, a chegada de um velho cliente. O menor deles, magro e de olhos pequenos, olhava pela janela em silêncio. O terceiro, sentado na cama, calculava mentalmente os juros da quantia devida e a ser recebida. Riu dos seus pensamentos. A negociação seria difícil, mas tudo se resolveria. “Posso acender as luzes?”, perguntou impaciente o grandalhão. “Não”, comandou o lacônico contador. Levantou-se lentamente da cama com um cigarro apagado entre os dedos e com olhar que mais escurecia o quarto.
A noite estava úmida. Era a primavera de Amsterdã. A água da chuva, empoçada na estranhamente limpa sarjeta, refletia uma trêmula e pálida lua - “A lua na sarjeta”, disse Chet Baker, e começou a solfejar com voz arrastada os versos da velha canção: “it`s only a paper moon / Sailing over a cardboard sea”... Tossiu e lembrou-se da última dose que o aguardava na gaveta do seu quarto de hotel. “Para embalar meu sono... Sonhar, talvez”. Atravessou a rua de olhos fechados tentando lembrar o último sonho sonhado. Riu com seus lábios secos: “meus sonhos adormeceram”.
Chet não estranhou a porta aberta e a surpresa com a visita foi breve. Já a recebera antes, em diversos momentos. O assunto era o de sempre: o dinheiro da mercadoria cuja última dose seria adiada. A conversa do quarteto foi rápida. O argumento cool do trompetista não comoveu os comerciantes europeus, que o lançaram pela janela. Chet, no chão, ainda viu a lua mais uma vez e disse “It`s only a paper”...

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Mountain in the clouds

Miroslav Vitous é um cara que, na minha discoteca, tem amargado um certo ostracismo. Ouvi mais quando jovem e movido pelo rock'n'roll. Eu, assim como diversos outros da minha geração, me aproximei do jazz por causa do som do Weather report, banda da qual Miroslav participou. O som eletrificado propiciava maior transitividade entre os jovens. Naquele período, no início de sua carreira musical, Miroslav andou encarando a guitarra, mas, para mim, ele foi e sempre será um grande baixista. Agora, por exemplo, estou ouvindo um dos seus solos num tema do cd Mountains in cloud, o seu primeiro como líder, gravado em 1969. Encontramos aqui a semente sonora que gerou o Weather Report. Os jovens músicos d'antanho, agora encastelados no Olimpo (seria a mountain in the clouds?), abraçaram a linguagem fusion e fizeram um bom disco do gênero. O som pungente do baixo de Vitous soa sem constrangimentos entre os acordes de Hancock, os pedais de McLaughlin, o metralhar (às vezes excessivo) de Dejohnette (Joe Chambers participa das duas últimas faixas) e o fraseado ríspido do saxofonista Henderson. É um disco histórico para os apreciadores do som fusion. Deixarei Freedom jazz dance e Epilogue para vocês se divertirem.


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Geri Allen

Em 1994, dez anos após o seu debut como band leader, uma bela negra sentou-se ao piano e começou a dedilhá-lo sem o menor pudor. Mais despudorada ainda por saber jogar com as influências, mas mantendo uma dicção própria ao mainstream jazzístico. Geri Allen estava tocando jazz, e dos bons. O resultado foi o cd Twenty one. Lá no allmusic (que só deu três estrelas e meia para esse disco), o comentarista a descreve como uma pianista que "plays with a spontaneity and melodic gift that greatly transcends rote imitation. Her improvisational style is at various times both spacious and dense, rubato and swinging, blithe and percussive. It's a genuinely expressive, personal voice; her music is an amalgam — honestly conceived, intelligently accessible, and well within the bounds of what is popularly expected from a jazz musician of her generation". Geri estava acompanhada por uma dupla responsável por um bom capítulo da história do jazz: o baterista Tony Williams e o baixista Ron Carter. Eu a achei uma pianista e tanto, com toque firme e límpido. Experimentem um pouco da sua pegada nos temas Introspection (de Monk) e Feed the fire (Allen) e me digam o que acharam da moça.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Chet - 13 de maio de 1988 (versão 1)

"Diabos, isso está ficando difícil", disse, entre dentes e arquejante, o corpo esquálido pendurado na parede externa do prédio, do pequeno hotel de Amsterdã. As muitas rugas do rosto desértico e encovado estavam inundadas por caudaloso suor que mostrava a necessidade de um pouco mais de esforço para alcançar a janela do seu quarto, ainda alguns metros acima. Distância medida pelos olhos iluminados por fúria latejante, que o impulsionava alguns centímetros a mais. O esforço esfolava e transformava em garras as suas mãos. "Ninguém roubará meu trompete, não, ninguém", disse as arranhadas cordas vocais em sua garganta. O que restava dos músculos corroídos pela heroína e álcool contraíam-se, enquanto as unhas feriam-se nos tijolos, que teimavam em escapar-lhes. De repente, a janela pareceu mais distante aos seus olhos, agora límpidos. Riu para si quando viu sua mão ferida: o sangue nas pontas dos dedos já teve conotação mais sublime, quando, de posse do seu trompete, ele harpejava seus temas favoritos. "Sim, minha alma voava e levava outras com ela. Alguém me disse isso, que meu sopro dava asa às almas desse mundinho cão. Não sei sobre elas, mas eu, sim, flutuo com meu trompete. Sim, senhor, eu sei como voar".

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

O caminho harmônico de Berlin

O baixo elétrico é instrumento que, no jazz, tomou mais força a partir do hibridismo fusion, que emergiu nos anos sessenta. Irmão mais jovem do bom Wood (o baixo acústico), o baixinho é relegado a esferas consideradas menos nobres pelos puristas. O fato é que alguns músicos que manuseiam esse instrumento tornaram-se verdadeiros ícones para a juventude que aprecia alguma coisa do estilo fusion/smooth. Entre eles posso citar Pastorius, Clarke e, por que não, o nosso finado Nico Assumpção. Acrescento à lista mais um nome que tem se mostrado mais do que eficiente nessa seara: Jeff Berlin. Nascido do cruzamento entre um cantor de ópera e uma pianista, Berlin não escapou à sua destinação: a música. O jovem, porém, como vários outros que iniciaram o trajeto musical nesse período, não escapou ao apelo rock’n’jazz. O disco In Harmony's Way (2001), que agora apresento, apesar da sonoridade fusion, guarda uma intencionalidade jazzística muito interessante. As composições de Berlin são muito boas (é um disco autoral) e, com a reunião de convidados como o saxofonista (soprano e tenor) Dave Liebman, o vibrafonista Gary Burton, o guitarrista Mike Stern, o tecladista Clare Fischer e mais um monte de gente que a preguiça me impede listar, consegue dar uma consistência e tanto a esse trabalho. Os apreciadores do fusion, com certeza, apreciarão esse disco. Deixarei, para fazer a cabeça da moçada, This is your brain on jazz e Everybody knows you when you’re up and in.
PS – Esse post é dedicado ao Sérgio Sônico.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Barítono à Cuber

Graças a Deus, Vinyl incumbiu-me de tarefa menos árdua do que aquela endereçada ao Salsa. O redator-chefe pediu alguma coisa sobre baritonistas menos conhecidos do grande público, e, de imediato, veio-me o nome de Ronnie Cuber. Eu, pelo menos, não o conhecia até comprar um disquinho chamado In a New York minute, gravado em 95, com a companhia de Adam Cruz (bateria), Kenny Drew, Jr. (piano) e Andy McKee (baixo). Não diria que é um disco maravilhoso, mas é inegável a qualidade do baritonista. Seu sopro é consistente e o fraseado mantém-se na mainstream do jazz. O Allmusic reservou poucas linhas sobre ele, e aqui reproduzo:
A powerful baritonist in the tradition of Pepper Adams, Ronnie Cuber has been making excellent records for over 20 years. He was in Marshall Brown's Newport Youth Band at the 1959 Newport Jazz Festival and was featured with the groups of Slide Hampton (1962), Maynard Ferguson (1963-1965), and George Benson (1966-1967). After stints with Lionel Hampton (1968), Woody Herman's Orchestra (1969), and as a freelancer, he recorded a series of fine albums (both as a leader and as a sideman) for Xanadu and performed with Lee Konitz's nonet (1977-1979). In the mid-'80s, Cuber recorded for Projazz (in both straight-ahead and R&B-ish settings), in the early '90s he headed dates for Fresh Sound and SteepleChase and Cuber performed regularly with The Mingus Big Band.
Um fator que, para mim, colabora para elevar o nível desse disco é a performance de Jr., o filho de Kenny Drew. O pianista mostra que, no caso, o fruto não caiu longe do pé. Ele conhece bem as possibilidades das teclas brancas e negras. Vale uma conferida. Deixarei Dig e For bari & bass para vocês curtirem.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

The Nels Cline Singers


É isso: fui contratado pelo Jazzigo. Achava que nunca mais me comprometeria com tal veículo, mas, como já é sabido pelo povo, todo homem tem seu preço. A minha conta bancária "deep red" mudou de patamar: agora está apenas "red". O auspicioso salário oferecido pelos administradores do blog, mais a liberdade de escrever quinzenalmente, fizeram-me rever meus valores. Rapidamente, numas de mostrar serviço, aceitei o material para a primeira oficial tarefa. Vinhas, aka Vinyl, disse-me que era um dos camaradas citados em uma das listas "melhores do ano passado", no quesito jazz. É o tipo de disco que me faz pensar sobre os caminhos que a música tem seguido, não apenas o jazz, mas a música em geral. Às vezes, ao percorrer os labirintos da música, a gente entra em alguns becos escuros que guardam surpresas nem sempre agradáveis. Pois bem, Vinyl incumbiu-me de ouvir o The giant Pin, do The Nels Cline Singers, que curiosamente não tem ninguém encarregado da cantoria. O bandleader e guitarrista Nels Cline soou-me como um Frisell. Diria que Cline é o seu filhote punk. O primeiro tema, Blues, too, foi o que me levou a compará-lo com Frisell, mas, a partir de Fly fly (o segundo do disco) o trio trafega do free ao som raivoso e distorcido por overdrive das bandas de rock'n'roll contemporâneas - punk, mesmo (Square king é rock modernoso para as bandinhas juvenis morrerem de inveja). Blues, too foi, para mim, uma armadilha eficaz - caí direitinho. Como disse o articulista do allmusic "Cline not only having his way with electric guitars and various effects boxes but also demonstrating a sympathetic grasp of disparate musical styles, including thrash/punk, lyrical mainstream jazz, and avant-garde experimentation". É o tipo de disco que, se no Jazzseen, seria apedrejado e esquartejado por Garibaldi e pelo Predador. O fato: se jazz, eu já não o reconheço. Dispensado, com louvor.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Bennie Wallace

Bennie Wallace já está na estrada há bastante tempo e tem uma significativa discografia. Desde 1978, quando lançou o seu primeiro lp, já gravou em torno de vinte discos. Destes eu só tenho três. Conheci o seu som recentemente e, isso me alegra, é um daqueles que nos permite dizer "o jazz ainda vive". O crítico do allmusic define seu sopro como uma mescla de Ben Webster com Eric Dolphy. Não entrarei na seara comparativa, não senhor. Basta-me tê-lo como um excelente saxofonista. Não posso negar que, apesar de uma certa reverência à tradição dos grandes nomes do sax, e também por isso, Wallace não recusa algumas aventuras experimentais. Bom. Tentarei comprar o seu último disco, uma homenagem a Hawkins. Enquanto esse não vem, vou curtindo uma homenagem anterior, endereçada ao seu, ao meu, ao nosso Monk. O disco foi gravado em 1981, pouco tempo depois da morte de Monk. Wallace está acompanhado por Eddie Gomez (baixo), Dannie Richmond (batera) e, em algumas faixas, com o trombonista mingusiano Jimmy Knepper. O resultado fez-me pensar em quão interessante ficaria o diálogo desse saxofonista com o o nosso maluco predileto. Ouçam Skippy e Ask me now, e depois reportem suas impressões.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

The lost chords

Conheci Carla Bley ainda no cd Dinner music , um dos primeiros. O que, na época, chamou minha atenção foi a concepção dos arranjos: tudo soava simples e altamente digerível, apesar do tempero outside que permeava todos os temas. Ao ouvir The Lost Chords find Paolo Fresu, seu disco mais recente (The Lost Chords é o nome do quarteto), a impressão não se altera. Carla (piano), Swallow (baixo), Andy Sheppard (sax tenor e soprano) e Billy Drummond (bateria) mantêm o peculiar modo de compor e tocar. O flueghel de Fresu, por sua vez, merece o destaque no título. Seu sopro é encorpado e extremamente lírico (por favor, não confunda com meloso ou piegas), casando perfeitamente com a sonoridade que vigora nesse interessante trabalho. Fresu é um nome que reforça a idéia de que o jazz se mudou para a Europa, e, por que não, para outros rincões distantes nesse mundão sem porteiras. O encarte traz uma narrativa curiosa de suas viagens pelos trópicos (américa central e do sul), que poderia suscitar rancores nacionalistas para os patronos das visitadas repúblicas de banana (as seis primeiras faixas, reunidas sob o título The banana quintet, abordam diretamente essa viagem) . Mostrou-se compensador o esforço para encontrar Fresu, que levou a banda por caminhos ermos e selvagens, passando por Roma, para, enfim, conseguirem encontrar Paolo* em Paris: a sessão gravada em França é muito agradável. Confiram One banana.
*Pronuncia-se paulo e não paôlo, como é o costume tupiniquim.