domingo, 23 de dezembro de 2007

Fats' last session

Vinyl, meu velho, eu também tenho um conhecido que tem o hábito de escrever. Trata-se de Gésus Nonato, brasiliense, mas nascido em algum recanto à margem do São Francisco (e marginalizado se mantém). É daquele tipo de escritor para quem escrever é a própria vida. Vive d'isso. Solteiro, 51 anos, mas com corpinho de 62, pode ser encontrado vendendo um ou outro poema no entorno brasiliense. O pouco que ganha, ele investe no rango e em discos. Escreveu um continho sobre a última sessão de Fats Navarro no Birdland (para a maioria dos entendidos essa sessão não existiu). Infelizmente eu não tenho o disco Bird & Fats Live at Birdland (é uma daquelas gravações feitas da platéia por fãs - a qualidade é sofrível), para usar a faixa The street beat como trilha sonora. Deixarei, então, a faixa The heaven's doors are wide open, do cd Complete Blue Note Sessions (Fats e Tadd).
A última jam
A primavera de 1950 se despedia e o verão se anunciava na brisa, que insistia através da janela semi-aberta trazendo sons de carros e buzinas – a batida das ruas. O trompete descansava no pequeno sofá do quarto de hotel. No banheiro, apoiado na pia, cabeça baixa, Fats fitava a água descer pelo ralo levando fios escuros do sangue que expelira com a tosse tuberculina. Os olhos baços liam naqueles traços o seu próximo destino. Arre! A saudade seria apenas da sua amada música. Ela lhe dera tudo, era tudo que tinha. O que mais poderia fazer, nessa terra, um filho da mistura de tudo que ela detestava – latino, negro e chinês? Ela foi a passagem sem volta da infernal Miami para a iluminada New York. Mais tosses. O fôlego escapa em pequenas gotas de sangue. O ar dói no peito ferido. Ah, minha musa, música linda, o que há de ser? Só mais uma sessão. Só. Ao lado do trompete, a seringa, já preparada (o que restou da última dose de heroína), se oferece às cansadas veias. Minha musa, só mais uma vez. O corpo, já a metade do que foi, se levanta. O palco do Birdland... No palco, Bud e Bird me aguardam. E a musa, minha música, comigo, como se fosse a última vez, só mais uma vez.

6 comentários:

Cinéfilo disse...

Triste, mas ótimo.
E rápido como um improviso, que é a essência.

Anônimo disse...

Agradeço ao Carlos por permitir que meu "contículo" descanse na rede. Se deixarem, mais tarde escreverei outro.
Obrigado ao Grijó por ter lido e, melhor ainda, ter achado ótimo. Isso faz bem pra alma calejada. Devo dizer, e isso não é uma retribuição, que o seu texto (como o do Salsa) é sinal claro que a literatura do Espírito Santo é de muito bom nível.

John Lester disse...

Quando estive no Birdland, dando meu último abraço no saudoso Sal Mosca, não senti esse clima tuberculino. O clube havia mudado de endereço. As toalhas eram limpas, os guardanapos de pano. Os carros na rua, com suspensões macias. Os copos, quase todos vazios. Nada fazia ruído, o que não atrapalhava os músicos, todos sadios de bochechas rosadas...

Somente a visão de Sal trazia emoção. E a conta, essa foi paga com cartão com chip.

Belo texto para quem tem um nome tão feio.

ReAl disse...

Navarro morreu uma semana após o tal show. Muitos acham impossível, considerando o seu estado de saúde, ele ter tocado com tanta energia. Daí ficarem em dúvida se a gravação foi realmente feita na data divulgada. Gostei do conto justamente por jogar com a lacuna que escapa aos historiadores. Cria-se o espaço para o mito, para a lenda. Navarro, como herói do jazz que é, merece ter uma lenda só para ele.
Parabéns para Gésus.

Anônimo disse...

Que triste...mas bonito, e pode ter acontecido assim mesmo...!
Parabéns ao Gésus!

Anônimo disse...

Parece q acharam seu caminho original nesse mix de conteúdo literário e abordagem de personalidades do jazz.Ressalto ,somente, que um bom blog de jazz de mineiros não se trabalha em silencio.Boas Festas.Edú