quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Aviso aos navegantes

Na sexta-feira, eu falei do apocalipse, do fim próximo do mundo. Oráculo quase, que, como todo oráculo, pode ser lido de diversas formas. De fato, pode-se ler: as coisas acabam. Às vezes, de outro modo, a eternidade pode se nos apresentar de modo paradoxal: efêmera, fogo fátuo, epifânica mas marcante, inesquecível. Sim - um terremoto, uma tsunami, um naufrágio e os braços de uma sereia no fundo do mar. Palíndromos, labirintos, musas. Em outro momento, eu diria:
Aviso aos navegantes

I
Amar é moto
II
Do naufrágio
só sobras
bóiam, mortas.
Frágil obra
à deriva
inventa histórias e
assombra olhares navegantes de plácidas enseadas.
III
Da frágil nau
só sobram restos
que assombram a insólita placidez
espraiada no olhar detido na orla.
Mais um naufrágio
na ânsia argonauta:
o risco do oceânico horizonte
é calmaria/tempestade
escrita nos hieroglíficos fragmentos
despejados nas praias.
Ó, alma opressa pela fragrância de abismos!
IV
Os poetas,
desde que o mundo é mundo,
navegam em seus barquinhos de papiro
sobre abismos índigos;
recolhem almas náufragas
e aquecem-nas com mortalhas;
para os corpos esquecidos
constroem piras...
e, enigmático anseio,
erigem com seus versos faróis
que guiam aventureiros
às rochas e arrecifes.
V
O calado suporta
a solitária travessia e
o silêncio condiz com as oceânicas profundezas
enquanto a corrente – terna – conduz.
VI
Singrar mares e
colher tempestades
nos cantos das sereias
– sem âncoras, bússolas, astrolábios...
no incontinente
perder-se é preciso.
VII
A rota a seguir nunca foi segura
apesar dos luminosos faróis,
dos astrolábios ofertados
e do macio catre em que sonhei
ter conquistado todos os mares,
todas ilhotas perdidas,
todos os recantos ermos,
sacrossantos e pagãos...
foi lá nas macias e cálidas profundezas
onde sussurrei meus delírios de posse
que me vi prisioneiro.
VIII
Derivo.
Alma náufraga,
não agonizo mais,
não me apago no luto
das terras idas,
nem rumino outros dias
ocultos pela Esperança.
Sim, derivo
entre atóis de afiados arrecifes e,
seguro nas crinas dos maremotos,
arremesso-me contra rochedos
para vê-los sangrar o meu sangue e,
rubricado meu nome em seus poros,
retorno à implacável quietude do mar.
IX
Resto de uma equação
mal sucedida
só,
sobro.
Equívoco de uma operação
híbrida,
naufrago.
E, daqui do fundo do abismo,
creiam-me,
o mundo é plano.
X
Esses são meus espinhos.
E eu, cacto,
quis chorar todas as lágrimas
e virar deserto...
(Decerto o mar em mim não deixou).

Ouçam, ali no pdcast Quintal do Jazz, três temas interpretados por Art Farmer, retirados de um excelente disco gravado em homenagem a Duke Ellington (1975). Acompanham-no Cedar Walton (p), Sam Jones (b) e Billy Higgins (d).


Link: Avax

8 comentários:

pituco disse...

salsa san,
putz postagem...piramidal

lindos cantos sobre navegantes e mar...pressumo que tenhas ascendência lusitana, acertei?^

precisas conhecer o poeta rogério santos(amigo virtual)que tb tem lindos poemas de mar e com quem mantenho uma parceria lítero-musical...nesse eixo internético sampa-tokyo...oportunamente acesse o link...folhadecima...lá em meu blog, por favor.

agora,
que sonzaço esse de mr.farmer...e que rabecão bem tocado,não é verdade?...swingadaço

obrigadão pela visita e comentário...
abraçsons pacíficos

Salsa disse...

Pituco,
Obrigado pelas palavras. Escrevo mui raramente.
Quanto à minha ascendência, eu não escapei da influência lusitana (mais um cristão novo - Oliveira), mas tem também a polonesa (Brezinsky) e a italiana (Bagatelli). Um coquetel europeu tropical.
Esse disco de Farmer é realmente muito bom. Eu me surpreendi ao ouvi-lo (em função do período da gravação).

figbatera disse...

Caraca, Salsa, que belo poema!
E o fundo musical tb, sensacional!
PARABÉNS!!!

Érico Cordeiro disse...

Mestre Salsa,
Pois quanto sal dos nossos mares são lágrimas portuguesas, italianas e polacas, hein?
Belo poema náutico - além de músico, professor, chef de cozinha, sedutor inveterado, também dominas as artes da poesia!!!!!
Parabéns pelo poema e pela escolha musical - não consigo ouvir, mas intuo maravilhas. Afinal, Farmer é dos grandes, grandes mesmo!!!
Abração!

Salsa disse...

Valeu, Fig e Érico.
Mas, mais do que um poema náutico, é um poema da aventura e do desastre. O primeiro e pueril verso "amar é moto" é o que importa. Todo o resto é uma alegoria do desencontro amoroso. Faz parte de um pequeno e fragmentado texto que trata do assunto. Restos que chegaram à praia.
Tentem ouvir o disco de Art Farmer - é muito bom.

John Lester disse...

Mestre Salsa, destemido navegante, não há qualquer dúvida de que o mundo é plano. Os poetas é que ainda insistem em dar-lhe formas novas.

Cada vez mais percebo que prefiro Ellington pela boca dos outros. Excelentes faixas de Farmer.

Grande abraço, JL.

Rogério Coimbra disse...

Só mesmo esse poema para amainar minha perplexidade ao saber de Miguel Marvilla. Já tinha lido o Jazzseen.Palavras, palavras, com elas ele se fez, com elas ele se foi.
Salsa, grandioso, Lester, emotivo, somaram tristeza.

Salsa disse...

Sim, Lester, é plano - pura idealização.
Coimbra, ainda és capital. Apareça mais.